sexta-feira, 2 de maio de 2014

Crise e globalização

Manuel Meixide Fernandes. O autor é professor no ensino secundário de língua e cultura francesa e escritor oriundo de Chantada.

 


Globalização ou mundialização seguem a ser palavras muito pouco conhecidas para a grande parte da população. Porém, o desvendamento do verdadeiro significado destas importantes palavras é fulcral para o futuro da comunidade humana. Infelizmente, o estado geral de indolência acrítica da sociedade atual, embriagada pelo materialismo e o hedonismo reinantes, não deixa espaço para a política, além da infrapolítica patrocinada pelo Estado e concretada na atual partitocracia. O termo globalização, definido e proclamado pelo poder político como uma idade dourada de progresso e bem-estar material a nível planetário, mesmo para os países ditos em vias de desenvolvimento, mas desconhecido pelo cidadão médio, significa realmente a instauração de um único sistema político e económico em todo o mundo, quer dizer, a instauração de um novo totalitarismo a nível mundial (superando largamente a velha ditadura liberal-parlamentar reinante em cada Estado concreto). Com efeito, este sistema único cria por sua vez um pensamento único e uma ideologia única, rechaçando com violência tudo o que for diferente. A conclusão é que este sistema produz a fortiori o que se costuma em chamar um governo totalitário.
A materialização formal deste governo, sem dúvida muito importante, não é essencial para o que estamos a explicar. Desde a queda do bloco comunista, começamos a viver sob este governo de signo totalitário. Vivemos o seu totalitarismo em todos os âmbitos, no âmbito ideológico, económico e político. Este totalitarismo foi sintetizado ajeitadamente em duas lapidárias e orwellianas expressões: o pensamento único e o fim da História, pertencendo esta última e conhecida expressão ao economista japonês neoliberal Fukuyama. Quanto ao caráter formal deste totalitarismo globalizante, sim temos um exemplo no planeta, a U.E., o único até o momento, pelo menos no âmbito económico, embora com cada vez maior poder político e executivo, nomeadamente a partir da crise financeira. É justamente a própria crise económica global no seio da U.E., a que está a centrar o debate político européu em redor de uma clara aposta pela integração política, desejo muitas vezes feito público pelas próprias autoridades europeias. Este velho desejo, refletido no próprio nome da organização, União Europeia -provavelmente já presente desde a sua fundação como CEE na década de 50 do século passado-, está a ser repetido cada vez com mais frequência: o ministro alemão pela Economia, Wolgfang Schauble, falou numa verdadeira revolução nos Estados membros, aproveitando a crise, que signifique uma maior integração política, até mesmo chegar à criação de um Governo da Europa com um presidente da Comissão Europeia eleito por sufrágio universal (El Pais, 13-11-2011, pág. 12). O presidente Zapatero é ainda mais claro durante um encontro da campanha eleitoral de 2011, quando diz textualmente : Tiene que haber un Gobierno europeo que tome decisiones para todos. (La Voz de Galicia, 18-11-2011, pág. 43). Por último, lembremos sempre que totalitarismo e eleições nominalmente democráticas não são termos contraditórios, como o demonstra a vitória por sufrágio universal do partido nacional socialista alemão na década de trinta do século passado.
Estes dous últimos exemplos, realmente significativos, transparecem de jeito evidente as íntimas intenções e desejos da classe política europeia: a criação de uma federação europeia com sé em Bruxelas. Poder-se-ia pensar num primeiro momento que tal federação é positiva para a população, como já se está começando a fazer de jeito mais ou menos explícito nos mass media, nomeadamente nos jornais, a continuar com a boa imagem da U.E. em geral. Neste senso, temos de lembrar que quando começou a crescer a U.E., este novo organismo político global foi apresentado pelos mass media como um claro avanço para a população europeia, sinónimo de progresso, europeísmo e bem-estar para todos. Quem pudesse estar em contra da U.E. era ou um imbécil ou uma pessoa de ideologias já fracassadas. Agora podemos ver como o monstro nasceu monstro e quer crescer cada vez mais. O mesmo aconteceu com o nascimento do euro, a moeda global europeia, sancta sanctorum da nova Europa, e agora imprescindível tesouro a proteger do alcance da crise. Perante estes flagrantes enganos do poder -mais alguns na sua extensa e numerosa lista através dos séculos-, o primeiro que temos de fazer é desmascarar sem medo a globalização. A globalização é a tirania sob um Estado monstruoso, como o está a demonstrar cada dia de jeito implacável a crise atual.
Todas estas afirmações não são um exagero precipitado, é a lógica histórica após a queda do muro de Berlim e da URSS. Após estes dous eventos históricos e o começo da última década do século passado, os dous blocos irreconciliáveis da guerra fria desaparecem, e o mundo já esta pronto para a sua uniformização. Esta uniformização vai ter como uma das suas principais ferramentas o livre comércio, mais concretamente o neoliberalismo ou ultraliberalismo económico, centrado na nova Rússia capitalista, na África do Sul post-apartheid e na abertura da China aos mercados internacionais. Este ultraliberalismo económico vai estar baseado nas teses da escola económica de Chicago, fundada pelo prémio Nobel de economia do ano 1973, Milton Friedman. Os eixos desta escola económica são três: desregulação do mercado, privatização, e redução das despesas públicas. Tudo para atingir a tese principal desta escola de pensamento económico: o mercado tem a capacidade de gerir-se a si próprio, e há que evitar qualquer tipo de obstáculo ou disfunção que possa evitar esta tendência natural. Por outras palavras, o objetivo é criar um livre comércio realmente livre, no que o único soberano seja ele próprio. Durante a década de noventa do século passado, a escola de Chicago vai ver aumentada a sua hegemonia e influência no pensamento económico mundial, a coincidir precisamente com o início do processo globalizador. O ultraliberalismo económico vai produzir o aceleramento da uniformização económica e política do planeta, usando a violência como principal ferramenta de implementação, como muito bem documenta a excelente e magna obra A doutrina do choque, de Naomi Klein.
Achamo-nos neste momento numa fase já avançada do complexo processo histórico denominado globalização, que nasce como já foi comentado acima, a começos da década de 90 do século passado com a desintegração da URSS e com o fim da guerra fria. A nova Rússia vai ser mais um país de economia capitalista, ao igual que os seus antigos satélites e as novas repúblicas independentes nascidas após a desintegração da confederação socialista soviética. A liberalização económica da URSS significa um enorme alargamento dos mercados internacionais capitalistas, porquanto estamos a falar do país mais extenso do planeta, a possuir numerosos recursos naturais. De uma outra parte, e com o desembarco dos Chicago boys -membros da escola económica de Chicago- na China por volta do ano 1985, introduzindo claras medidas económicas ultraliberais, o socialismo clássico no mundo desaparece quase de fato, reduzido a uns poucos países, entre os que se podem citar Cuba e Coreia do Norte. O exemplo paradigmático da nova época é sem dúvida a China, na que a partir da data antes indicada, vai-se praticar um sistema híbrido ou misto que poderiamos denominar sócio-capitalismo. O crescimento económico imparável da China coincide com a data da chegada da escola de Chicago a Beijing, crescimento portanto acontecido não por acaso.
A globalização, uniformização a nível planetário, baseada na industrialização e no banco, significa a transformação do ser humano numa máquina perfeita de produzir, uma máquina que terá de aumentar indefinidamente o seu horário de funcionamento para fornecer o combustível das monstruosas indústrias transnacionais. Por outras palavras, significa a robotização absoluta do ser humano. O indivíduo -incluindo o funcionariado-, tem de ser o novo robô das multinacionais e do novo Estado. O pouco tempo de lazer disponível tem por força de desaparecer, engolido pela lógica da produtividade, o rendimento, a competitividade e a concorrência, elementos tradicionais do livre comércio e da empresa privada capitalista que vão ser levados até às suas últimas consequências. Com efeito, estes elementos, plenamente desenvolvidos, também vão ser implementados no âmbito público -como já se está a ver na última legislação produzida pelo sistema-, nomeadamente na educação e na sanidade. A pequena e mediana empresa capitalista está condenada a desaparecer, engolida neste futuro de despiedada concorrência e produtividade. O caráter nacional destas empresas vai ser substituído no curto e meio prazo pelo capital transnacional, na sua grande parte o poderoso capital dos países emergentes, como testemunha a compra de mais de 200 empresas europeias pelas multinacionais chinesas durante o período 2008-2010.
De uma outra parte, o futuro dos pequenos negócios e dos empresários em nome individual também não parece muito fácil. Durante a presente e terrível crise económica global, miles de negócios estão a fechar as suas portas na Europa. O endividamento de muitos deles não lhes permite abrir um outro negócio, ficando condenados à marginalidade ou a qualquer tipo de emprego. As profissões liberais, por sua parte, estão também condenadas em geral a acabar nas mãos das grandes empresas e das multinacionais, oferecendo os seus serviços em troca de outras condições muito diferentes à época anterior à crise: muitas mais horas de trabalho e muito menos salário. A outra alternativa, a guisa de exemplo, são os 600 euros de média que estão a ingressar neste momento os arquitetos galegos. Aliás, o pobre e indigno status do empregado e do operário vai-se degradar ainda muito mais sem dúvida, ficando obrigado o indivíduo a escolher entre duas opções: a fome, ou prostituir o seu corpo num horário de escravo manual assalariado. As mesmas opções que tinha no século XIX, em plena expansão do capitalismo. Finalmente, a crise está destruindo aceleradamente a classe média, que cresceu de jeito exponencial graças à generosidade do Estado do bem-estar. O mais terrível desta destruição contínua é que não significa a baixa de um degrau no status, da classe média para a classe baixa, mas o verdadeiro descenso aos infernos da pobreza. Esta pobreza é o destino de centos de miles de pessoas que pertenciam à classe média, e agora têm de alimentar o seu ventre em comedores sociais.
A crise financeira global do biénio 2007-2008 é mais um passo fundamental na agenda globalizadora do poder e das elites governantes, criando os alicerces de uma nova ordem mundial na que o centro de gravidade geopolítico deixe de situar-se em Ocidente, passando a achar-se nos denominados países emergentes, nomeadamente a China. Isto significa o fim de um ciclo histórico de mais de quinhentos anos -desde a descoberta da América-, mas também o nascimento de um outro ciclo no que Ocidente terá de ter pela primeira vez um papel secundário ou subordinado. Este novo papel não deve fazer-nos esquecer a hegemonia ideológica: Ocidente vai seguir sendo hegemónico de um ponto de vista ideológico. O mundo globalizado graças a capitalismo e socialismo, é um modelo universal exportado pela cultura ocidental, adotado por todos os países do planeta. O modelo materialista e industrial de Ocidente triunfou em todo o mundo, pondo em perigo o equilíbrio ecológico da Terra, agredindo com violência as comunidades indígenas tradicionais, e marginando com frequência a cultura milenária dos novos países a colonizar, cultura muitas vezes profundamente antagónica com o próprio modelo ocidental. Um exemplo desta realidade é o Japão. Diz-se que no Japão convivem uma cultura milenária e uma das sociedades mais industrializadas do mundo, mas é mentira. O Japão renunciou aos seus valores tradicionais, em troca desta renúncia atingiu um desenvolvimento industrial e tecnológico que tem o elemento material como único valor. O mesmo acontece na China. Onde é que está a China de Confúcio e os seus valores morais tradicionais?. Essa China não convive com a China moderna, essa China desapareceu, ou melhor dito, essa China prostituiu-se em troca dos benefícios puramente materiais. E o mesmo aconteceu na Índia, onde a antiga tradição espiritual, moral e artesanal é substituída por um nefasto modelo industrial a partir da sua independência, atraiçoando o valioso legado de Mahatma Gandhi.
Após vinte e sete anos interrompidos de extraordinário crescimento económico, a China está prestes a se converter na primeira potência económica mundial, substituindo os EEUU. A crise está a beneficiar muito a economia chinesa, porquanto apesar de baixar o crescimento do seu PIB anual (do 12% ao 7%), como já foi mencionado acima, entre os anos 2008-2010 mais de 200 empresas europeias foram compradas por empresas chinesas a um preço muito baixo. Quase se poderia afirmar que quanto mais durar a crise mais crescerá exponencialmente a hegemonia económica chinesa. Historicamente, a potência ou império hegemónico é o que impõe a sua personalidade ao resto do mundo: o Império Romano, a potência da Antiguidade, impus as suas leis e a sua língua a boa parte da Europa, Oriente Próximo e norte de África; o Império Britânico, a potência do século XIX impus a sua vontade pelos cinco continentes, fazendo de Londres a capital financeira do mundo. A personalidade política chinesa, como sabemos, está baseada num sócio-capitalismo totalitário, onde o indivíduo deve manter obediência absoluta ao seu Estado, e onde a desobediência paga-se com a tortura e com a morte. A hegemonia económica e militar estadounidense, a partir do fim da II Guerra Mundial, uniformizou o mundo livre em base a um forte consumismo e uma forte industrialização, semeando o mundo de bases militares para atingir um controlo estratégico e geopolítico do planeta. Esta foi a histórica hegemonia norte-americana, possibilitada pela guerra fria e a sua ameaça constante (o arsenal nuclear também estava justicado nesse mesmo contexto). Como é que será a muito provável hegemonia chinesa?.
Tendo em linha de conta que a intervenção do FMI na Europa durante a crise, está a condenar os países intervidos a uma hipoteca de duração indefinida para pagarem os elevados empréstimos da organização internacional, e que a quarta economia da UE , a espanhola, já foi intervida no seu setor bancário, a economia europeia aproxima-se claramente para o seu ocaso prolongado e definitivo. Tudo isto sem falarmos da política de austeridade e da sua consequência, as profundas reformas estruturais -pura aplicação das teses da escola de Chicago-, e que está a condenar o conjunto da UE a uma profunda e indefinida recessão, incluída a Itália, a terceira economia da zona. Para sermos mais exatos, haveria que dizer que toda a economia ocidental semelha caminhar para o seu ocaso no curto prazo, afirmação fundamentada no débil crescimento estadounidense a partir de 2009 -em redor de um 3% do PIB-, comparado com o imparável crescimento chinês. Destarte, o principal agente do projeto globalizador-totalitário semelha ser o país natal do filósofo Confúcio. Podemos enganar-nos nestas observações, mas não parece descabelado pensar deste jeito. Isto poderia significar a exportação do modelo híbrido sócio-capitalista chinês ao resto do mundo: a liberalização total da economia de uma parte, e o controlo também total do indivíduo sob o Estado de uma outra.
É fundamental portanto que a população saiba o que é a globalização, a perda não só das diferentes soberanias nacionais -perda que se está a produzir dia após dia desde que começou a crise-, mas da liberdade individual e coletiva em nome de uma soberania globalizante e totalitária muito maior e pior do que a nacional, que implica necessariamente a morte da consciência do indivíduo e a sua entrega total em mãos do novo Estado. Isto não é um exagero, agora podemos assistir à tomada de poder desta nova estrutura política globalizante por cima das legislações nacionais, como já ocorreu com a Constituição Espanhola, sem modificar desde 1978 e mudada não há muito em tempo recorde pelas elites europeias para a adatar às novas exigências globalizadoras e ultraliberais, com a inestimável colaboração do Congreso de los Diputados. Aquele que tiver dúvidas sobre o caráter ditatorial e totalitário da globalização em marcha, que reflita sobre tudo o que se está a fazer na Europa desde o início da crise: o resgate da banca, os cortes contínuos e sangradores no âmbito social, a mutilação das pensões, o despedimento de miles de trabalhadores públicos e a mutilação do seu salário, a legislação para criminalizar a resistência pacífica e a liberdade de expressão... Se tudo isto, feito com o mais absoluto desprezo dos cidadãos e da sua opinião, não são os traços de uma terrível ditadura global emergente, então é que temos os olhos vendados pela formosa miragem da democracia moderna.
Finalmente, perante a estrema complexidade e gravidade política dos acontecimentos que estamos a viver, e que aumentará sem dúvida no futuro por causa da própria inércia dos fatos, cumpre fazer antes de mais uma profunda reflexão. Primeiro, a maravilhosa globalização que nos prometiam não é tão maravilhosa e está-se a manifestar durante a crise como claramente tirânica e anti-democrática; segundo, a própria ideia de civilização fica questionada, quer dizer, o denominado progresso, herdado do pensamento ilustrado e das revoluções liberais do século XIX, baseado no modelo da industrialização -comum em capitalismo e socialismo e alicerçado no banco-, está a oprimir o cidadão até o ponto de anular completamente a sua vontade e a sua capacidade de decisão. Por outras palavras, a civilização está a anular o indivíduo. Terceiro, cumpre portanto uma revisão racional profunda e pelo miúdo do significado das palavras civilização, cidadão e democracia. Esta revisão e análise rigorosas têm-nos que ajudar a achar o lugar da verdadeira civilização, mas também da verdadeira democracia.


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